Briga de egos
 
Era uma discussão danada! Ninguém suportava mais aquela conversa, não podiam se encontrar que logo começavam a brigar. E olha que já se conheciam havia séculos. Mas o barulho que faziam era tão grande que até os deuses tapavam seus ouvidos, pois não queriam se meter no assunto nem decidir quem estava certo ou errado.

— Você alaga ruas e estradas, desabriga famílias e, ainda assim, se acha mais importante do que eu? Você só pode estar brincando!

— E o que você faz? Não pode ficar nem um pouco nervoso que logo se esquenta o suficiente para prejudicar o mundo, provocando incêndios que acabam com milhares de hectares de florestas, dizimando várias espécies da fauna e flora do planeta. Eu procuro não causar dor, não sufoco nem queimo ninguém, o mesmo não acontece contigo!

— Não causar dor? Você não pensa no resultado de suas ações? Invade casas, arrasta carros, afoga pessoas, destrói patrimônios e sonhos de gente que passou a vida toda lutando para ter algo e acha que não causa dor?

— E o que fazes tu? Tornando a terra seca, fazendo com que muitos a larguem em busca de um ambiente mais agradável e próspero para viver. É nesta hora, na qual tu mostras tua pior face, que todos clamam por mim!

— Da mesma forma, me desejam quando tu fazes teus estragos. Quem tu pensas que depois de um grande temporal, é aguardado com grande ansiedade e esperança de dias melhores?

— Não ouço te chamarem para dar vida às flores, aos campos ou às matas! Escuto sim, as orações encaminhadas por todos aqueles que aram a terra e plantam seu sustento. Se te chamam nos campos eu nunca ouvi!
— Também nunca presenciei alguém chamar por ti, com tanto fervor, em uma grande cidade! Todos sabem bem que não podem controlar o seu jeito, pois às vezes, tu chegas tão calma e agradável, que é difícil acreditar que possas te transformar, de uma hora para outra, em uma força de tão grande destruição.

— Não é verdade! Todos sabem da minha importância para a vida. Sou eu uma das responsáveis pelas belas fotos de jardins e gramados. Pomares e hortas sabem que sou necessária e onipresente.

— Tu não és mais nada do que uma convencida! Quantos me invocam em suas férias de trabalho? A quem as crianças pedem para não faltar em suas férias escolares? Quem faz as praias e piscinas ganharem vida e graça?

— Para férias e brincadeiras tu até podes servir, mas não para trabalho! Para isso sirvo eu, que ajudo a pôr à mesa a energia do trabalhador. Frutas que se transformam em sucos e sobremesas; legumes e hortaliças que fornecem vitaminas e sais minerais; carne branca ou vermelha, não importa a cor, a proteína é o que interessa. É força e vigor para trabalhar e viver.

— Sempre exagerada em teus autoelogios! Se só o que pensas fosse importante, o mundo seria muito mais estressante do que é hoje, mas não o é porque eu existo. Estou sempre propiciando momentos de alegria e confraternização, reunindo famílias e amigos, estou sempre presente nas melhores fotos e recordações. Não me lembro de boas fotos tuas! Bem, talvez tenha faltado luz, brilho. Hihihi!
podem gerar resultados maravilhosos.

— Engraçadinho! Tu te achas mesmo o astro mais importante do mundo, não é? Achas que teu brilho ofusca a minha importância? Estás enganado, querido! Não preciso da tua luz para aparecer, com ou sem ela sempre estarei presente e, ao meu modo, semearei alegria e felicidade para muitos, embora alguns às vezes não entendam da mesma forma, tenho um papel a cumprir e não posso sair de cena, caso contrário, só restaria sofrimento e dor!
— Para com isso! Agora também estás te achando a salvadora do mundo? Não exageres!

— É, não dá mesmo para conversar, você se acha! É muito esquentado mesmo, hein! Cuidado para não ter uma dor de cabeça e explodir, bonitão! Vou-me embora daqui, pois ainda há muito o que fazer. Não tenho uma vida mansa e parada como a sua. Você mais parece uma tartaruga de casco brilhante. Vou andar por aí e talvez à noite eu encontre alguém mais interessante para conversar.

— Eu é que sou esquentado! Para onde vais, levas contigo uma nuvem carregada na cabeça, e ainda assim, achas que só trazes sorte e felicidade a quem te recebe em casa, estás brincando, minha filha! Vai mesmo procurar a tua turma, mas desde já te aviso, à noite, vai ser difícil encontrar alguém que se pareça comigo. Alguns tentam, mas não conseguem ter o mesmo brilho e luminosidade. Hahaha.

E, finalmente, a discussão acabou e os deuses puderam ficar à vontade, assistindo ao lindo arco-íris que se formava, certos de que as divergências em determinados relacionamentos, também
   
  Roupa seca não arrebenta a corda
 

Trabalhava de terno, mas andava de ônibus. Enquanto sua indumentária levava os vizinhos a pensarem que ele tinha um excelente salário, o transporte coletivo demonstrava a dura realidade da grana curta. O trânsito nas grandes cidades é lento, violento e cansativo, e em uma cidade como o Rio de Janeiro, isso representa dizer que o indivíduo deve levar em torno de duas horas para chegar em casa, caso trabalhe no Centro e more em Madureira.

É uma rotina desgastante, que irrita e descontrola os nervos. Nem sempre tudo isso passa antes do trabalhador chegar a sua residência, encontrar sua esposa e rever seus filhos. E quem paga essa conta?

A recepção é fria. A mulher na cozinha preparando o jantar o cumprimenta com um “oi”, a resposta é um eco. Os filhos estão concentrados em seus celulares e nem percebem a chegada do pai. Nessas horas, nada melhor do que um bom banho frio.

O caminho até o quarto parece maior que o de costume, a preguiça é uma cruz. Só os mosquitos conseguem alguma reação de suas mãos. É tapa na perna, no braço, no peito. Bom remédio para afastar a letargia.
Neste momento, seu aposento inspira a imaginação e parece ser o melhor lugar do mundo. Cama e travesseiro, cavalo e arma para um guerreiro desgastado pela rotina diária. A porta está perto, mais um passo e uma explosão de nervos se instala em seu corpo, avermelha o rosto e espanta o cansaço. O que vê é ultrajante. Sua cama tomada por várias peças de  roupas que acabaram de sair da corda, toalhas de banho e de mesa, bermudas e shorts, calças compridas, cuecas, calcinhas e sutiãs, camisas de malha, polo e social, meias e panos de prato, lençóis e blusas de Jersey, fronhas e meiões de futebol. O que é isso? É a pergunta que lhe resta.

Dizem que Deus está nos detalhes! E, talvez por isso, um sopro de racionalidade o tenha feito pensar que o melhor seria se acalmar, dobrar e guardar as roupas sobre sua cama. Limpar seu campo de batalha, para montar seu cavalo e partir para um mundo, literalmente, de sonhos.Mesmo sem saber por onde começar, a vontade de ver logo aquele lugar limpo, pareceu-lhe mais sensato iniciar seu trabalho pelas peças de maior tamanho. Pegou os lençóis para dobrar e os ficou  admirando, pensando nos segredos de amor que eles guardavam, quantas vezes teriam servido de palco para o entrelace das caras-metades que ali habitavam;  na sequência, achou melhor pegar as fronhas para fechar o conjunto cama, e não pôde deixar de imaginar que elas sabiam de tudo sobre seus sonhos e fantasias, pois todas as noites, abraçavam sua  cabeça, ouvindo de perto ideias noturnas e pensamentos antes de dormir. Será que elas sabiam o pai-nosso e a ave-maria? Ou será que se interessavam somente pelos sonhos mais calientes? As toalhas de mesa estavam na fila da dobra. Elas não exalavam qualquer sinal de que já tinham apoiado panelas, pratos, copos e xícaras de café, não continham migalhas de pão nem marcas de molho, só mostravam em suas estampas uma fazenda rica e próspera, com vacas-leiteiras e galinhas poedeiras, que exibiam seus produtos com muito orgulho, talvez na esperança de que esses matassem a fome de todos e os fizessem esquecer-se de churrascos e pratos como medalhão à piamontese e galeto assado.

Por  vezes, as toalhas trazem muito mais fartura do que a sobreposta; para as toalhas de banho e rosto, a ordem seria decrescente e, ao mesmo tempo em que aumentava sua  vontade de ir logo para o chuveiro, as toalhas de banho carregavam em si, lembranças de luta, suor, alívio e alegria; as toalhas de rosto e os panos de prato traziam em si, o enxugamento das mãos calejadas da dona de casa e o chocolate da boca das crianças; quando pegou suas calças compridas lembrou-se do trabalho e da necessidade de se postar mais formal em certos ambientes; as bermudas o remeteram aos passeios em shoppings e os shorts, às peladas de futebol; reparou que as cuecas eram várias e percebeu que jamais elas poderiam fechar uma delação premiada, seria o fim!
Com as roupas de casa e as suas separadas, passou a observar as peças de sua mulher e, enquanto dobrava um vestido de malha, observou que as traças fazem um estrago silencioso e transformam “roupas de sair” em “roupas de ficar em casa”; as blusas de Jersey tinham brilho e bom caimento para um corpo maduro, mas ainda em forma; observou que as roupas íntimas são constantemente lavadas e por isso, o desgaste de calcinhas e sutiãs é mais rápido e perceber isso lhe trouxe tristeza, pois a usuária nunca lhe cobrou nada, ainda que a necessária vaidade nunca a tenha deixado.
Depois de tudo dobrado e guardado, sua esposa entrou no quarto e, sem perceber o que ele acabara de fazer, perguntou:

— Até agora e você não tomou seu banho?
Ele olhou para ela incrédulo e não se conteve, puxou-a pelo braço e lhe deu um carinhoso e demorado beijo.